quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A companhia de balé do Hammond

in car ova sholder

Com certeza, o cara estava furioso; horrivelmente, brutalmente irritado e capaz de extrema violência - um homem crescido cheio da mesma raiva estúpida e maldade descontrolada que um valentão de 10 anos de idade. Eu temia pelo outro homem - isto poderia acabar mal, e quem sabia o que aquele valentão poderia fazer? E quando eu pensava que a coisa toda explodiria e aconteceria um desastre, tudo foi salvo. Outra pessoa apareceu, exalando educada reflexão e moderação e, pairando serenamente através dos nervos à flor da pele, dissipou o perigo. E ninguém tinha saído dos seus carros ou trocaram uma palavra.



O drama todo permaneceu mudo, com exceção de limitadas vocalizações que os motoristas faziam com seus motores. O valentão com certeza rosnava e grunhia ao volante do seu carro, mas a distância e a pouca luz não permitiam que meras expressões faciais comunicassem toda a força de sua fúria à pobre vítima na frente dele. Ele não acertou a traseira do cara, ele não acionou a buzina ou berrou da janela enquanto via o drama desenrolar-se, mas ele sinalizou bem efetivamente que ele era, no que lhe dizia respeito, o cachorro grande e não teria problemas para matar o cachorro pequeno, mandando um recado aos outros que ele exigia respeito. E em troca, o cara na frente sinalizou sua resposta com igual claridade. Um carro não tem uma cauda, mas vi seu carro com uma cauda firmemente posicionada entre suas patas traseiras. Um carro não pode curvar seus ombros e encolher-se de medo, mas este sim, fazia movimentos pequenos e curtos, pequenas e tímidas paradas na aproximação a uma rotatória, e espiadas nervosas e hesitantes no tráfego que vinha no sentido contrário.


Os carros não protagonizaram esta história totalmente: o valentão estava num hatchback comum e pacato - um Honda, eu acho - e a vítima estava num carro menor, mas era um Peugeot 207, ou seja, não tão menor assim. Não eram seus tamanhos ou estilos que mandavam estas mensagens, era a maneira como eram dirigidos, suas linguagens corporais. E observando, eu me perguntava por que isso nunca havia sido tentado: balé com carros. Não sou exatamente um grande patrono das artes - eu moro em Ross-on-Wye e restauro velhos Land Rovers - mas vendo a complexa comunicação entre estes dois motoristas nessa delicada batalha, eu queria ver mais, queria ver uma exploração mais profunda desse veículo incrivelmente expressivo. E nada de movimentos exuberantes, giros, curva em 180º de ré ou manobras arriscadas. Como micro-expressões, são os movimentos pequenos, menores, quase insignificantes que revelam os pensamentos, mensagens e intenções de alguém. A maneira como um carro pára, como posiciona-se perto do centro ou mais para o lado, vira rápido ou lentamente, acelera ou desacelera vigorosamente; todas estas coisas são ações que podem ser feitas de uma maneira puramente robótica e automatizada, ou com alma e significado. E acho que na maioria das vezes são feitas com alma e significado. Todos nós somos artistas.


Claro que esta minha companhia de balé precisará de um palco, mas já existe um - nós dirigimos nela diariamente. As performances poderiam acontecer fora de contexto, e para uma platéia já envolvida. Eu adoraria se, em um determinado momento na minha viagem até Londres, um balé sobre amor, perda ou rivalidade acontecesse na rodovia M4 com três Astras e um par de Clios fazendo nada ilegal ou perigoso, apenas andando junto com o tráfego. A estação de rádio local poderia fornecer à platéia uma pequena história, como quando lê-se o programa de uma peça, e os menores e mais sutis movimentos transmitiriam uma tremenda dimensão de emoções e significados. Ver a dançarina principal, digamos um Smart Coupé interpretando um cisne abandonado, menosprezada pelo objeto de sua paixão - um belo mas estúpido Monaro - perseguida pela M4 e até a A329M para Bracknell pelas galinhas d'água, interpretadas por dois caras em Astras cinza, seria uma maneira realmente tremenda de começar o seu dia. Os artistas não precisariam ser pagos - eles poderiam apresentar a peça em suas viagens diárias.


Também planejarei uma peça solo - acho que será sobre um marinheiro voltando para casa e descobrindo que sua esposa fugiu com um amigo e sua casa foi alugada para uma família de padeiros - e eu a apresentaria. Criarei uma seção longa e bem tocante enquanto o marinheiro reflete sobre seus anos no mar e o abismo que isto colocou entre sua vida na terra e a vida no mar que ele preferiu. E irei comunicar a raiva, a tristeza e o arrependimento através da direção expressiva. Se você me ver, tenha paciência: isto pode necessitar de um pouco de prática para fazer direito. Mas será maravilhoso.


Fonte: Top Gear Magazine (Outubro de 2011)
Tradução: John Flaherty


Toda Quarta-Feira, traremos artigos escritos por Richard “Hamster” Hammond, falando sobre vários tópicos, quase todos sobre carros. Fiquem ligados.

7 comentários:

  1. Não conhecia esse lado mais "afeminado" do Hammond..
    kkkkkkkkkkkkkk

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  2. o começo do texto me fez pensar que ele iria falar sobre os caras que, só porque possuem um carro mais novo ou com motor mais potente, se sentem que estão no direito ou prioridade de trafegar em uma via, ou de que tem que ultrapassar o carro "de menor expressividade" de qualquer jeito, mesmo que tenha que parar ou converter logo à frente.

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  3. Quero um pouco do que ele tomou...

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