segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Minha filha e eu passamos por sobre um corpo e entramos num bordel"

Jeremy Clarkson

Há uma escassez terrível de comida no leste da África, o que é ótimo se você for uma celebridade. Pois isto significa que você pode ir até a Etiópia para ganhar publicidade e um belo bronzeado. É uma beleza. Você só precisa andar por um lixão, parecendo deprimido, e então abraçar um bebê com moscas cobrindo os olhos dele enquanto você faz sua melhor expressão para fazer os outros doarem dinheiro.



Acrescente umas duas gravações mostrando você fingindo escutar uma mãe faminta, use Everybody Hurts do REM na edição final, e então volte ao hotel para tomar umas cervejas e um debate entre os figurões da caridade sobre as injustiças do Banco Mundial, das companhias farmacêuticas suíças, da General Motors, do McDonald's e os malditos Conservadores.


Enquanto isso, em casa, todos estão totalmente entediados. Diz a lenda que, uma vez, "Bonio" disse para uma platéia que foi vê-lo cantar With or Without You que toda vez que ele batia palmas uma criança na África morria, fazendo com que um engraçadinho na platéia gritasse: "então, pare de bater palmas".


No fundo, todos nós nos sentimos mal pelas massas famintas, mas a compaixão está coberta pela certeza de que a África está, basicamente, ferrada. Russell Brand pode andar por um lixão até não poder mais, mas isso não mudará o fato de que os governantes são corruptos, a violência é um estilo de vida, o Saara está aumentando e ninguém pode fazer porcaria alguma para mudar isso. É apenas uma questão de saber o que irá acabar com eles primeiro: a fome ou a AIDS.


Eu sempre me senti assim. Bob Geldof pode achar que eu fui ao Live Aid para que outros, menos afortunados que eu, possam ter uma vida melhor. Bem, eu não fui por causa disso. Eu fui porque queria ver o The Who. E apesar de sempre negar, sempre cultivei, no fundo, uma crença que o dinheiro que paguei pela entrada foi usado para comprar um rifle Kalashnikov novo para os guarda-costas do president etíope.


Enfim, continuando. Eu tenho uma regra bem rígida sobre como meus filhos aproveitam as férias. Eles podem namorar e beber no feriado de Páscoa, mas no Verão eles têm que ir para algum lugar um pouco mais educativo. Por isso que, no fim-de-semana passado, minha filha mais velha e eu partimos para umas pequenas férias em Uganda.


Alguns fatos sobre a região: metade da população deste país do leste da África sem acesso ao mar tem 14 anos ou menos e o PIB é de R$3.14 bilhões ou, em outras palavras, cerca de 1/10 do que a Grã-Bretanha gasta apenas com saúde. É um país muito pobre, mas Entebbe, onde as Nações Unidas possuem uma base, parece mais com Surrey. Exceto pelas lojas, cuja maioria têm nomes homenageando o bebê Jesus. Tem o açougue Senhor Abençoado e o empório da banana Salve o Todo-Poderoso. Também tem muitas barracas de beira de estrada vendendo camas de casal. Não sei porquê.


Mas e a capital, Campala? É uma história diferente. Já vi pobreza nas minhas andanças. Uma vez vi uma mulher na Bolívia disputando um saco vazio de fritas com um cachorro, e no Camboja tem-se a impressão de que praticamente todos tiveram suas pernas explodidas por minas terrestres. Mas nada pode prepará-lo para o horror absurdo de uma favela ugandense.


Nós saímos do carro, passamos por cima do corpo de um homem, e algum tempo depois fomos cercados pela prova definitiva que Dante calculou muito mal o número de círculos no Inferno. Começemos pelo saneamento básico.


Não existe saneamento básico. Bem, tem uns dois banheiros públicos, mas já que custam 200 xelins (R$0,20) para serem usados, todos simplesmente fazem as necessidades no que eles chamam de rua. Em dado momento fomos levados para um bordel de 9 m², que na época de chuva é inundado por meio metro de esgoto não-tratado. Isso quer dizer que os clientes têm a oportunidade de contraírem cólera e AIDS numa tacada só.


Você deve estar se perguntando por que alguém vai para lá. Bem, é simples. Num passeio de duas horas não vi uma única garota com menos de 18 anos. "Elas não sobrevivem", disse o nosso guia. Traduzindo, ou elas são estupradas e mortas para não denunciarem ou elas são decapitadas por curandeiros em cerimônias diárias de sacrifício de crianças.


Os garotos não parecem ligar muito, já que quase todos eles estão mais preocupados em cheirar solvente de tinta. Eles ficam deitados - alguns com apenas três anos de idade - totalmente alheios ao fato de que estão numa poça de urina de outra pessoa.


Sabe o armário debaixo da sua escada? Numa favela de Campala, isto seria considerado uma casa de luxo e à noite abrigaria sete pessoas. Não consigo imaginar como isso seria possível, a não ser que todas ficassem de pé. Claro que, quando chega a chuva, isso é necessário.


Pelo menos, encontramos um belo lugar para almoçar. A alguns quilômetros da favela, ao lado de um incrível complexo hoteleiro cuja dona é a esposa do presidente, tinha um restaurante belga onde bebemos cerveja Nile e comemos um excelente ensopado de carne. Custou mais do que a maioria das pessoas em Uganda ganhará numa vida inteira.


Enquanto tomávamos uma xícara de café, que é delicioso nesta parte do mundo, conversamos sobre o Exército de Resistência do Senhor, que tortura, assassina e estupra praticamente tudo que não tenha morrido de fome no norte de Uganda.


Após debatermos sobre o que devia ser feito, incluindo na conversa a ganância das corporações e as mudanças climáticas, concluímos que o Live Aid não deu certo. Live 8 não deu certo. Nada deu certo. E, sim, enquanto é bom ouvir David Cameron jurar que não diminuirá a ajuda à outros países, não podemos nos esquecer que, no ano passado, o Ministério da Defesa gastou R$4.8 milhões em coletes à prova de bala e capacetes para o exército ugandense, que, honestamente, não está realmente fazendo algo que muita gente chamaria de "ajuda".


Tudo que sei é, depois de ter ido lá, você se sente compelido a fazer alguma coisa. Aparecer num vídeo para caridade, andar num lixão, mostrar compaixão? Certo. Contem comigo.


Fonte: The Sunday Times (11/09/2011)
Tradução:
John Flaherty

Toda Segunda-Feira, traremos artigos escritos por Jeremy Clarkson, falando sobre vários tópicos, quase todos sobre carros. Fiquem ligados.

6 comentários:

  1. estou trabalhando sobre o assunto áfrica com meus alunos agora nesse final de ano e vou passar esse texto para eles, sensacional texto do Jeremy, um dos melhores que eu li aqui

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  2. Nossa, vou ser sincera em dizer que quase parei de ler na metade do texto. Nunca li nada igual.
    É muito alheio a nossa realidade imaginar isso tudo acontecendo logo ali, na África...
    Vou tuitar, com certeza.

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  3. fod*, de que adinata tanta propaganda e ajuda de famosos se onde tem que mudar não muda??? é a mesmoa coisa com o Brasil, felizmente apesar de ter miséria em alguns lugares aqui estamos bem melhores que na Africa! Mas se a corrupçõ e coisas feitas por baixo do pano não acabarem não vai adiantar nada......
    todo mundo fala em passeatas pacificas, mais elas sempre acontecem e agora são ignoradas pelos politicos, ai quando as pessoas se revoltam e começam a destruir tudo são consideradas vandalas e marginais!!! mais assim foi a unica maneiras que eles conseguiram pra chamar atenção!!! Acho que todo mundo sabe, não tem essa de acorda brasil, e sim tomem vergonha governantes.....


    []s

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  4. Por isso que gosto dos textos do Jeremy, ele não tem papas na língua e sabe como poucos descrever algo que a maioria das pessoas não teria a estômago ou "culhões" pra dizer.

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  5. O lance é ler esse texto todos os dias para ver como nossa vida é boa...

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  6. muito alheio... estamos quase lá...

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